"Quando se cria um vazio moral na vida pública, atribuindo aos mercados o papel de julgar reivindicações e demandas em competição entre si, criamos aquela voz moral em nome de um tipo de neutralidade ou tolerância. Mas, na verdade, aquele vazio moral é preenchido por moralismos estreitos e intolerantes: tipicamente, com várias formas de fundamentalismo ou com formas de nacionalismo estridente. São tentativas de preencher um espaço público, esvaziado de sentido político mais amplo, com fontes de sentido que são profundamente destrutivas", afirma Michael Sandel, em artigo publicado por em Domani, 13-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Publicamos nesta página um trecho do diálogo sobre a encíclica do Papa Francisco intitulada Fratelli tutti, solidariedade social e fé no mercado, publicada pela revista Vita & Pensiero nº. 3/2021, que chega às bancas em 15 de julho.
O diálogo original, editado por Paul Elie e traduzido por Roberto Presilla, envolve três interlocutores: Pankaj Mishra, Marilynne Robinson e Michael Sandel. Aqui isolamos as intervenções de Sandel, filósofo moral que leciona em Harvard, aportando pequenos cortes no texto para tornar compreensíveis os seus argumentos mesmo fora do contexto do diálogo.
Michael J. Sandel é professor na Universidade de Harvard onde oferece o curso Justice pelo qual já passaram mais de 15 mil alunos. Esse curso foi o pioneiro ao ser disponibilizado gratuitamente na internet e na televisão.
Ele é autor, entre outros, de Justiça: o que é fazer a coisa certa, O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado e Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética, publicados pela Civilização Brasileira.
O último livro publicado é A tirania do mérito. O que aconteceu com o bem comum?, 2a. edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
O ímpeto da globalização neoliberal parecia irrefreável, quase um fato inerente à ordem natural. Agora que estamos diante da conta a saldar, não parece mais isso. Quem promovia e defendia o projeto neoliberal de globalização o apresentava realmente como se não houvesse outra escolha, como se fosse parte da ordem natural, tão incontornável quanto o clima. Portanto, a única questão política e ética era: teremos condições de nos adaptar rapidamente? A forma de adaptação recomendada, visto que a nova economia exigiria competências e orientação tecnocrática, era cursar uma faculdade. Se você está preocupado com a possibilidade de seu trabalho ser deslocalizado para um país de salários mais baixos, vá para a faculdade e obtenha um diploma - você ganhará com base no que aprendeu. Esse era o mantra, conectado a uma espécie de promessa: você vai ter sucesso se você se empenhar; se você entrar no programa, se você se adaptar como sugerimos, você pode superar o problema da deslocação, da estagnação dos salários e da crescente desigualdade. Mas, nessas três ou quatro décadas, a lacuna entre vencedores e perdedores se tornou mais profunda, envenenou a política e nos afastou uns dos outros, em parte por causa das desigualdades que acompanhavam esse projeto. Mas havia outra coisa também: uma mudança na maneira como encarávamos o sucesso que andava de mãos dadas com o projeto. Quem chegou ao topo acabou acreditando que o sucesso obtido fosse fruto do próprio trabalho e que, portanto, merecia as recompensas com que o mercado premiava os vencedores e, consequentemente, que os perdedores também mereciam o seu destino. Desse modo, todo um conjunto de atitudes em relação ao sucesso, à vitória e à derrota tornou ainda mais tóxicas as desigualdades econômicas que estavam simultaneamente se ampliando. O papa está bem ciente daquela que é chamada "fé no mercado".
É interessante que a "fé" realmente descrevia essa visão dos mercados. É uma fé que não está bem articulada nem bem defendida do ponto de vista moral, mas é, ainda assim, uma fé segundo a qual os mecanismos do mercado agora seriam o instrumento principal para definir e realizar o bem comum. Ao lado dessa "fé nos mercados", está a crença de que, se os mercados forem livres e competitivos, entregarão às pessoas o que elas merecem.
Fico impressionado com o fato de que em Fratelli tutti o Papa Francisco considera que este é um projeto econômico, mas também o considera como um projeto moral e político, que corrói o bem comum e mina a possibilidade de solidariedade, porque se realmente pensamos que os vencedores merecem suas recompensas, será muito difícil pensar em todos nós como pessoas que compartilham um destino comum e que têm uma responsabilidade recíproca uns para com os outros. Isso nos leva a esquecer não só o papel da sorte, mas também da nossa dívida. Assim, o Papa Francisco pensa que defender a solidariedade comporta não apenas abordar as ideias neoliberais sobre os mercados e a meritocracia que leva aqueles que têm sucesso a se inebriarem dela até em excesso; ele acredita que também é necessário acertar as contas com uma específica imagem de liberdade, que tem seu fascínio: a ideia de liberdade que está na origem da "fé no mercado" e da crença de que você pode ter sucesso se tentar.
Há algo muito poderoso em tal ideia de liberdade: é a ideia de que, como seres humanos, como agentes, somos ou podemos ser autossuficientes, que podemos ter sucesso sozinhos. O Papa aborda enfaticamente essa ideia, reconhece sua força: é uma ideia consumista e individualista de liberdade, que aponta para uma senhoria sobre si a respeito da qual nos convida a refletir. Ele nos convida a notar que essa ideia aparentemente fascinante de liberdade, de senhoria de si, de autossuficiência nos separa da comunidade e do sentido. E, portanto, o projeto de solidariedade, além de ser um projeto político, é em última análise um projeto espiritual, que requer um afastamento espiritual da condição de estar nas garras dessa pesada e inebriante noção de liberdade; requer compreender a natureza espúria de liberdade que está na origem da fé no mercado. A solidariedade concebe a liberdade humana como indissociável do nosso estar situados e do nosso ser devedores.
Parece-me que a política hoje esteja dividida por uma dialética tóxica de hybris, de um lado, e humilhação do outro. Isso tem a ver com a forma como as desigualdades, que se ampliaram, se combinaram com a truculência da atitude soberba daqueles com as credenciais certas do ponto de vista profissional, e a sensação de impotência, exclusão e humilhação daqueles que não tiveram sucesso na nova economia, e que se sentem olhados de cima para baixo pelas elites munidas de credenciais profissionais. Do ponto de vista da filosofia moral e política, precisamos ampliar o projeto de justiça. Normalmente pensamos na justiça como justiça distributiva: como distribuir de forma mais equitativa o acesso aos bens básicos, como fortalecer e defender as redes de proteção, garantir uma oferta pública decente em termos de saúde, educação, acesso a alimentos, roupas e moradia. Tudo isso é importante. Mas não enfoca o interesse das pessoas não só pela justiça distributiva, mas também pela justiça contributiva, ligada à dignidade do trabalho e à sua degradação.
Por justiça contributiva entendo a vida em uma sociedade cuja economia está configurada de forma que todos possam contribuir de alguma forma significativa para o bem comum, tanto por meio do mercado de trabalho quanto de outras formas, na família e nas comunidades. É uma ideia bem articulada no pensamento social católico, que considero muito convincente. É a ideia de que a necessidade humana fundamental é aquela de ser indispensável para os próprios concidadãos, de estar em condições de empregar os próprios talentos para responder a tais necessidades e ser reconhecido e apreciado por o ter feito.
Assim, a justiça contributiva não diz respeito apenas à dignidade do trabalho, mas também ao papel do trabalho, da contribuição de cada um para adquirir reconhecimento, honra, estima, respeito. A fonte mais profunda de humilhação é o sentimento, presente entre muitos trabalhadores, não só que as elites os olham de cima para baixo, mas que o trabalho que desempenham não é valorizado, apreciado, não é fonte de reconhecimento. O desafio - inclusive moral - para a economia é criar uma forma econômica, moral e política de compreender a nossa vida comum, que permita a cada um contribuir e receber um reconhecimento por o ter feito.
O Papa Francisco escreve que “parecem que não têm lugar”, nas narrativas econômicas tradicionais, “os movimentos populares que reúnem desempregados, trabalhadores precários e informais e tantos outros que não entram facilmente nos canais já estabelecidos. Na realidade, criam variadas formas de economia popular e de produção comunitária” (n. 169). E continua dizendo que “isso (deve acontecer), porém, sem trair o seu estilo característico, porque são ‘semeadores de mudança, promotores de um processo para o qual convergem milhões de pequenas e grandes ações interligadas de modo criativo, como numa poesia" (ibidem). O Papa vincula tudo isso à renovação da democracia e à luta pela dignidade. Gostaria de acrescentar que o Papa Francisco, ao falar do bem comum, parece aceitar o desafio de manter juntos, de reconciliar duas ideias. O bem comum comporta em primeiro lugar um estilo de vida compartilhado em condições de pluralismo. E, no entanto, não pode ser apenas uma questão de consenso, porque ele acredita, com razão, em minha opinião, que o bem comum também aspira à verdade. Mas como manter juntos o pluralismo, de um lado, e a aspiração à verdade, do outro?
Sempre chamou minha atenção uma passagem de Isaiah Berlin sobre a liberdade, quando, citando Joseph Schumpeter, escreve que "um sábio certa vez disse que ‘perceber a validade relativa das próprias convicções, mas mesmo assim defendê-las sem recuar, é o que distingue um homem civilizado de um bárbaro’". Esta forma de pensar nos valores, no pluralismo e no bem comum sempre me pareceu errada. Se os valores são apenas relativos, por que defendê-los sem recuar? Então descobri o que o Papa Francisco escreve sobre este ponto em Fratelli tutti: “O relativismo não é a solução. Sob o véu duma presumível tolerância, acaba-se por facilitar que os valores morais sejam interpretados pelos poderosos segundo as conveniências do momento”. Para se confrontar com o pluralismo na busca do bem comum, é necessário criar uma vida comum e compartilhada, que possibilite uma deliberação que vise algo além do simples consentimento. Precisa visar algo verdadeiro. Parece-me um modo corajoso e ousado de acertar as contas com a questão do pluralismo e da verdade: considero-o muito convincente, mas vai contra a nossa inclinação natural de pensar muitas coisas, o nosso modo natural de lidar com o pluralismo. O que significa realmente tolerância? Falsa neutralidade.
Vimos isso repetidamente: quando se cria um vazio moral na vida pública, atribuindo aos mercados o papel de julgar reivindicações e demandas em competição entre si, criamos aquela voz moral em nome de um tipo de neutralidade ou tolerância. Mas, na verdade, aquele vazio moral é preenchido por moralismos estreitos e intolerantes: tipicamente, com várias formas de fundamentalismo ou com formas de nacionalismo estridente. São tentativas de preencher um espaço público, esvaziado de sentido político mais amplo, com fontes de sentido que são profundamente destrutivas.